Governo 2.0: Contribuições das Tecnologias para a Democracia Participativa no Brasil

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Autores: Solange M. Blanco, Paula Ugalde dos Santos, Angela Aparecida Santos

Pareceristas: Letícia Gomes CanutoRodrigo Bertamé e Maria Cecília Maciel Cavalcante

Introdução

O presente ensaio busca refletir sobre as possibilidades e contribuições das tecnologias da informação e da comunicação no fortalecimento da cidadania participativa direta no Brasil, a partir de breve análise de duas das muitas plataformas de interação e participação disponibilizadas pelo Governo, com este objetivo, a saber: e-cidadania1 e e-democracia2 .

Desenvolvimento

A modernidade trouxe consigo um tempo de mudanças estruturais no mundo, figurando dentre os seus acontecimentos mais significativos a Revolução Industrial e o desenvolvimento do capitalismo.

Nesse cenário, a partir do final dos anos 70, sob a motivação da busca de eficiência e transparência, tem início no mundo, um movimento de modernização do setor público. No Brasil, a influência é claramente percebida após o processo recente de redemocratização nos anos 90, quando práticas da New Public Management3 , como a reforma do Aparelho de Estado, são amplamente adotadas.

Assim, as décadas de 1980 e 1990 impuseram, de uma forma ou de outra, a modernização do setor público. De forma concorrente, na mesma época surgem as novas tecnologias da informação e da comunicação (TICs), influenciando também esse processo com as novas possibilidades inovadoras e transformadoras de comunicação. Como traduz o filósofo francês Pierre Lévy4 :

As redes informáticas modificam circuitos de comunicação e de decisão nas organizações. Na medida em que a informatização avança, certas funções são eliminadas, novas habilidades aparecem, a ecologia cognitiva se transforma. O que equivale a dizer que engenheiros do conhecimento e promotores da evolução sociotécnica das organizações serão tão necessários quanto especialistas em máquinas. (Lévy, 1999, p.36)

É importante inicialmente acrescentar uma breve ideia de que democracia estamos falando, e para tal, partiremos dos três modelos normativos de democracia apresentados pelo filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas, em sua obra “A inclusão do outro: estudos de teoria política”5 , que descreve as compreensões de democracia “liberal” e “republicana”6 existentes, apresentando um terceiro modelo que superaria os dois modelos anteriores.

Em se tratando do autor em tela, cabe ressaltar que a presente reflexão erige sobre os pilares do paradigma comunicativo, ou seja, a partir da racionalidade discursiva – livre, racional e crítica – com a qual Habermas busca apresentar uma alternativa à superação da razão instrumental iluminista que, utilizando a ciência e a tecnologia para ampliar o controle do homem sobre a natureza, resultando em sua aplicação amplificada para a base relacional adotada no projeto contemporâneo de sociedade.

Segundo o autor, a diferença decisiva reside na compreensão do papel que cabe ao processo democrático. O modelo “liberal” é um processo que visa programar o Estado para que se volte ao interesse da sociedade, sendo o Estado considerado um aparato da administração pública e a sociedade como um sistema de circulação de pessoas em particular e do trabalho social dessas pessoas, estruturada segundo as leis do mercado. (Habermas, 2002, p.270); já no modelo “republicano” a política não tem essa função mediadora. A política é concebida a partir de um contexto de vida ético, no qual surge a solidariedade como também fonte de integração social. Um estabelecimento da vontade política horizontal voltado ao entendimento mútuo, mas ainda no viés da democracia representativa, ou seja, um alguém que me representa e por decisão da maioria decide por mim.

No modelo liberal o status de cidadão é definido conforme a medida de direitos individuais que eles possuem em face do Estado e dos demais cidadãos (Habermas, 2002, p.271). Os direitos políticos seguem a mesma lógica servindo para validar interesses particulares, ou ainda outros a eles agregados, exercendo pressão sobre a administração, ou seja, o Estado é controlado pela vontade de cidadãos que agem em busca de benefícios particulares. O Estado é entendido como “o outro” e a relação se estabelece no formato “balcão de negócios”. Ações estratégicas que se “justificam” pelo voto. Parte da compreensão que cada grupo tem sua ética e todos têm sua autonomia. Os direitos políticos, portanto, servem para conferir “validação” a seus interesses particulares.

No modelo “republicano” há um avanço no que se refere à formação de opinião, pois o parlamento não se orienta pelo mercado, mas privilegia a interlocução, pressupondo uma auto-organização da sociedade pelos cidadãos com interesses particulares até opostos. O discurso político gera um embate que tem força legitimadora e o poder administrativo só pode ser aplicado baseado em políticas que se originam do processo democrático. A ação política já surge como função reguladora do processo, ou seja, os cidadãos, como membros do Estado, podem acompanhar se o poder estatal está sendo devidamente exercido, em benefício da própria sociedade. O cidadão republicano, nesse sentido, se orienta por expectativas que suplantam o seu interesse particular em nome do interesse comum (Habermas,2002, p.271). Dessa forma, percebemos que no modelo liberal o fator de integração social é o mercado e o do modelo republicano é a solidariedade.

Habermas entende que o modelo “republicano” já apresenta como fator positivo a auto-organização da sociedade pelos cidadãos com vistas a interesses coletivos, e não apenas como uma negociação com vistas a suprir interesses particulares, mas avalia como desvantagem do modelo o fato de “ele ser bastante idealista e tornar o processo democrático dependente das virtudes de cidadãos voltados ao bem comum, conduzindo a política por um viés estritamente ético” (Habermas, 2002, p.276), se guiando por sujeitos que partilham um conjunto de valores, de onde também se originam negociações que não se oriundam de um discurso racional capaz de neutralizar o poder e capaz de debelar ações estratégicas, dos pactos da maioria obtida (Habermas, 2002, p.279).

Nesse horizonte, o autor apresenta um terceiro modelo procedimental de democracia, a partir do conceito de política deliberativa, que intenciona utilizar instrumentos racionais de fundamentação moral e não apenas ética, ou seja, apenas vinculada a um ethos de maioria. Dessa forma, distancia-se da lógica representativa para a prática participativa, onde todos os cidadãos são livres e iguais para participar da criação de consensos históricos (Habermas, 2002, p.269). O cidadão abandona o papel passivo, de espectador, e assume a responsabilidade pela formulação, aplicação e fiscalização das decisões implementadas, conferindo-lhes legitimidade.

Pensando nesses termos, podemos dizer que a Internet trouxe consigo a possibilidade de fomentar o exercício da cidadania ativa de forma mais universal, uma latente possibilidade para o modelo deliberativo que Habermas propõe, considerando a capacidade de estabelecermos comunicação instantânea, no modelo todos para todos, mesmo em grandes distâncias.

Inegavelmente a rede mundial de computadores impôs fomento às mudanças em curso quando da sua capilarização, quer de comportamento, quer no modelo de família, ou no mundo do trabalho e na maneira de estabelecer relações sociais. Os avanços científicos e tecnológicos expandiram de forma estrondosa as possibilidades de comunicação, diminuindo as distâncias, mas não foram suficientes para estabelecer a paz ou sepultar a solidão do homem contemporâneo, pois, de forma concorrente, despontou também seu potencial para disseminar o terror e a violência. A aproximação de sujeitos de culturas distintas, de diferentes religiões e interesses, sem uma mediação respeitosa, abriu também um flanco para o confronto e a intolerância, resultando num efeito colateral indesejado e inverso ao almejável com o uso das redes.

Naturalmente todas essas mudanças também vêm influenciando o modelo de participação política que vem se modelando. Certamente, as redes sociais já eram identificáveis antes da Internet, diferente do que muitos acreditam, mas com a sua chegada a participação social vem sendo alterada muito rapidamente, na sua natureza e no seu comportamento.

Como um exemplo brasileiro de rede social mobilizada para a participação democrática antes do uso da Internet podemos tomar as mobilizações ocorridas no movimento “Diretas Já”7 , que reuniu em abril de 1984, na Cinelândia, no Rio de Janeiro, cerca de um milhão de cidadãos. Em uma época sem celulares ou Internet, quando uma linha de telefone fixo constituía um bem caro e de acesso restrito. Uma demonstração da força desta modelagem de rede social, que hoje conhecemos com novas tintas e com formação diferenciada das anteriormente já vividas através da história. Mudaram e estão em plena transformação na maneira como surgem, se comportam e são conduzidas, – um outro comportamento. O estudo contínuo e aprofundado nesse processo transformador é necessário, sendo difícil fechar um entendimento sobre a sua natureza e sobre o seu pleno potencial de efetividade. Inegável, portanto, concluir que a tecnologia alterou significativamente a esfera pública8 .

As tecnologias trouxeram também consigo um novo modelo de gestão pública conhecido como o Governo 2.09 , que se caracteriza pela incorporação de novas tecnologias no atendimento ao cidadão, na migração de serviços públicos para o ambiente virtual – concebidos com usabilidade, numa gestão centrada no cidadão – intencionando a co-produção de serviços, em que os usuários do serviço público possam participar do seu planejamento, ou seja, procedimentos que se diferenciam pela interatividade, uma comunicação ativa. Sendo assim, o modelo 2.0 turbinaria a cidadania participativa, buscando viabilizar a plena participação. Nessa categoria, os websites governamentais foram criados com a finalidade de serem canais de informação/comunicação, buscando a aproximação com a sociedade. Um modelo de governança que busca trazer o cidadão para o centro do processo, mas que descamba, quando alicerçado no modelo liberal apresentado supra, para uma postura exclusivamente clientelista, restringindo sua cidadania a uma relação de consumo, enquanto no modelo republicano, o mantém refém da ditadura da maioria.

Na última década, resultado de uma revisão do Modelo de Acessibilidade em Governo Eletrônico (eMAG), já estão sendo utilizados os avanços da versão 3.1, buscando agregar ainda mais acessibilidade ao modelo, projetado para as necessidades nacionais. “Seguindo a diretriz do programa de Governo Eletrônico de promover a Cidadania, o documento-proposta passou por Consulta Pública no período de novembro de 2010 a janeiro de 2011, recebendo contribuições tanto pelo sistema de Consulta Pública do Portal do Programa, quanto por e-mail. Em 21 de setembro de 2011, a versão 3.0 do eMAG foi lançada oficialmente no evento Acessibilidade Digital – Um Direito de Todos.”10

Dando consecução às mudanças de ordem mundial, muitas plataformas governamentais interativas foram criadas, e outras muitas tantas não oficiais11 , que receberam uma modelagem participativa, mas que ainda constituem interface extremamente frágil e de pouca efetividade, como veremos a seguir:

O portal e-cidadania, do Senado Federal, define-se como um espaço institucional on-line de participação política, disponibilizado ao cidadão brasileiro para que possa colaborar de forma mais direta e efetiva com o processo de autuação parlamentar. De seu sitio eletrônico retiramos os seus demais objetivos norteadores:

  • Promover maior conhecimento, por parte da população, do processo legislativo e dos debates em curso no Senado Federal
  • Permitir aos senadores e senadoras o acesso amplo às manifestações da sociedade sobre os temas legislativos em discussão na Casa
  • Proporcionar maior transparência à sociedade, seja por ampliar a divulgação das iniciativas de transparência administrativa e orçamentária da Casa, seja pela simplificação do acesso às informações orçamentárias da União e dos estados federados

Indicando, ainda, dentre suas finalidades:

  • Garante a liberdade de expressão, de opinião e de participação da sociedade (Grifo nosso)
  • Oferece mais ferramentas e oportunidades de participação dos cidadãos nas esferas de decisão sobre políticas públicas
  • Amplia o pluralismo e a representação das minorias no cenário político legislativo e parlamentar (Grifo nosso)

A proposta do portal e-democracia, desenvolvido pela Câmara dos Deputados, é, com o uso da Internet, “[…] incentivar a participação da sociedade no debate de temas importantes para o país”, sob a crença que o envolvimento dos cidadãos na discussão de novas propostas de lei contribui para a formulação de políticas públicas mais exequíveis. Dentre as ferramentas disponibilizadas aos cidadãos no ambiente virtual há fóruns, bate-papos, debate virtual, enquetes e biblioteca virtual que buscam influenciar as audiências públicas que promove, afinal, entre outras coisas, para prover de eficiência esses mecanismos de participação, e assim fomentar um modelo de gestão pública transparente, baseado em accountability12 .

Mesmo numa análise superficial de apenas esses dois sítios, verifica-se uma grande distância entre a teoria que expressam e as suas praxis, a iniciar pela ínfima participação popular nas enquetes formuladas. Como atribuir legitimidade democrática diante de uma participação virtual inexpressiva? Assim, as matérias passam a ser julgadas à revelia do interesse da sociedade, dando boa margem para manobras, sob a falsa justificativa de terem resultado de um procedimento participativo, sendo assim, utilizado de forma estritamente funcional, “para constar”.

Cabe ressaltar que não é o fato de ser virtual que desqualifica os instrumentos de participação. Certamente a falta de acesso a banda larga no país representa um impedimento para o processo participativo, o tornam inexequível, mas audiências públicas presenciais pouco divulgadas, com quoruns muito inexpressivos são igualmente nocivas para os objetivos que pretendem atingir. Como então considerá-las um dispositivo estratégico para o planejamento no modelo de gestão adotado?

No Brasil, é bem restrito o acesso da população à Internet, sendo preponderante aos cidadãos com maior poder aquisitivo ou – nas cidades maiores, onde a wi-fi é disponibilizada por órgãos diversos. Isso torna aqueles mecanismos incapazes de coletar informações que subsidiem a formulação de política públicas adequadas, ou pior, há o risco de serem utilizados como ferramentas justificadoras de projetos ou decisões, não legitimadoras. Nessas bases os dados viram as tais estatísticas…

É fundamental ressaltar que, segundo dados de 2013 do IBGE13 , metade da população brasileira ainda não tinha acesso à Internet à época. Certamente os números atualizados devem ter melhorado, principalmente com a disseminação do acesso via dispositivos móveis, mas certamente boa parte da sociedade está à margem dos processos participativos dessa natureza, o que impossibilita defendermos que os cidadãos têm hoje a efetiva oportunidade de participar de decisões que lhe afetam, ou como acompanhar as decisões que estão sendo tomadas por ele.

Outro sinal da falta de acesso encontra-se nos dados do Relatório de Tecnologia da Informação Global do Fórum Nacional Econômico Mundial de 2015 com o ‘Networked Readiness Index’ (Índice de Preparo Tecnológico), que avalia a capacidade e o uso de tecnologias de informação e comunicação de 143 países, expressos em matéria cujo título é: “Brasil tem a pior Internet do mundo e ganha título de “POBREZA DIGITAL”14 , indicando ainda a fragilidade da capacidade instalada no uso de tecnologias no país, o que acaba por constituir ainda impedimento para o desenvolvimento de uma cultura cidadã virtual participativa. Além do acesso, via banda larga, é preciso fomentar o letramento digital e informacional, um processo que demanda tempo e firmeza de propósito.

Se a Internet só permite a participação direta e efetiva de um pequeno contingente de privilegiados, esta não pode ser considerada uma esfera legítima de participação (por enquanto). Vale lembrar que legitimidade para Habermas (1983, p.219-220)15 é o horizonte sob o qual ergue-se a presente reflexão, “significa que há bons argumentos para que um ordenamento político seja reconhecido como justo e equânime; um ordenamento legítimo merece reconhecimento. […] é uma exigência de validade contestável […]”, completando:

Os críticos têm razão em afirmar que a regra da maioria, enquanto tal é absurda. Porém, ela nunca é pura e simplesmente uma regra da maioria… É importante saber quais são os meios através dos quais uma maioria chega a ser maioria: os debates anteriores, a modificação dos pontos de vista para levar em conta as opiniões das minorias… Noutras palavras, a coisa mais importante consiste em aprimorar os métodos e condições do debate, da discussão e da persuasão16 . (Habermas, 1997, p.43)

Neste ponto, depreende-se uma reflexão fundamental: se as tecnologias constituem tão poderosa via comunicativa, por que a tecnologia não resultou ainda em uma participação democrática mais expressiva (no que tange ao exercício direto da cidadania)?

Em entrevista, quando questionado a respeito da possível contribuição das conexões em rede para o fortalecimento da democracia, o sociólogo espanhol Manuel Castells17 avaliou que os movimentos em rede ainda não são totalmente conhecidos, se formando a partir de ideologias e motivações distintas, mas que certamente indicam um sintoma da crise da democracia representativa que temos, caracterizada por partidos e representantes a serviço deles mesmos e não dos cidadãos.

Como alerta Rouanet, a crise da sociedade contemporânea surge atrelada ao uso excessivo dessa razão funcionalista, que não dá conta do desafio de dar respostas efetivas aos novos paradigmas (2003, p.16)18, afinal, como estabelecer (e fortalecer) a cultura colaborativa/participativa, tratando, por exemplo, de questões globais como o clima ou sustentabilidade? Será que ainda pautados na crença de que a ciência e a tecnologia por si só serão capazes de manter tudo sob controle? Não há como defender que pelo simples fato de utilizar a tecnologia para as consultas públicas, mesmo que sem a efetividade necessária, há um definitivo ganho democrático? A tecnologia certamente fomentou uma importante e diferenciada interação, sedimentando a mobilização, mas no que tange à garantia da possibilidade da participação dos cidadãos nas deliberações, estamos muito longe de um modelo emancipatório. Outras possibilidades de composição, relacionais. Há um processo cultural profundo em curso, tanto no que se refere à mobilização em rede, quanto à cidadania ativa.

Para a necessária glocalização, ou seja, para desenvolver a capacidade de pensar questões globais e atuar nas demandas locais de forma comunicativa, há de se empreender em relações emancipatórias e não mais no viés funcional, preponderantemente utilizado até então e que já se comprovou insuficiente para os debates contemporâneos, – vide a crise de representatividade que hoje vivemos. Mesmo algumas iniciativas que se travestem autônomas, têm em sua base a crença em uma verdade única, não histórica, e uma aplicabilidade fragmentada, para um grupo exclusivo de pessoas.

Para melhor compreensão do conceito de modernidade funcional e de modernidade emancipatória aqui exposto, cabe a reflexão proposta por Rouanet:

Modernizar é melhorar a eficiência da administração pública, das instituições políticas, dos partidos. É um conceito funcional da modernidade, no sentido próprio da palavra: numa sociedade moderna as instituições funcionam melhor que numa sociedade arcaica. Mas a modernidade não se esgota nesse vetor funcional. Ela tem um segundo vetor, que não tem a ver com eficácia, e sim com autonomia. Sua matriz é o modelo civilizatório da ilustração, que não busca a funcionalidade das estruturas, e sim a emancipação dos indivíduos. […] uma sociedade não será moderna apenas quando os subsistemas forem eficazes e sim quando proporcionarem o máximo de autonomia para os indivíduos. (ROUANET, 2003, p. 16)

Nessa mesma esteira compreensiva, afirma Castells (2005, p.17)19 que “a tecnologia é condição necessária, mas não suficiente para a emergência de uma nova forma de organização social baseada em redes”. Afinal, se o conhecimento e a tecnologia fossem suficientes e garantidores de uma nova ordem de natureza, melhor, como lembra Castells, (p.18), mesmo analisando superficialmente a nossa história, é possível identificar que o progresso humano não constitui um conto de fadas: “os Holocaustos Nazi e Estalinista são testemunhas do potencial destrutivo da Era Industrial e as maravilhas da revolução tecnológica coexistem com o processo auto-destrutivo do aquecimento global e com o ressurgir de epidemias à escala do planeta”. Acrescentando: “[…] difundir a Internet ou colocar mais computadores nas escolas, por si só, não constituem necessariamente mudanças sociais”20 . (Castells, 2005, p.19)

A tecnologia pode ser uma grande aliada para o fortalecimento da cultura participativa e da democracia no século XXI, mas não é suficiente para garantir que essa transformação seja positiva, e mesmo assim, deve ser considerada quando a população tem acesso universal à Internet. A Estônia, por exemplo, país da União Europeia com 1.315.819 habitantes (2014)21 , é admirada por ser um padrão global de utilização digital, contando inclusive com o sistema de votação pela Internet mais antigo e avançado do mundo22 . Dados que permitem que a cultura da administração pública eletrônica seja consolidada, sem dúvida, mas não garantem, no entanto, que os problemas do país se evaporem por isso, ou ao menos em sucesso econômico: “De acordo com dados da União Europeia, o país está entre os dois com o pior desempenho econômico em 2012. Seu PIB per capita foi de apenas 68% da média dos membros da UE. O país também está às voltas com um problema migratório, tendo perdido cerca de 5% de sua população desde 2004.”23

Em outras palavras a tecnologia é ferramenta viabilizadora, que pode mudar o comportamento, certamente, mas talvez a crise maior para a gestão é de conteúdo. Se por um lado a Internet permite o trabalho com pessoas distantes, ela também pode ser facilitadora de uma comunicação instrumental na qual o interlocutor nada mais é do que um IP para a administração. É preciso trabalhar contexto, subjetividades.

Por isso é importante cultivarmos um olhar atento às mudanças em curso, pois de forma ingênua, podem reforçar as patologias de uma pseudo democracia que se alimenta de dados e procedimentos sem qualquer legitimidade de fato. A rede inegavelmente é uma potencial via de trabalho comunicativo – práticas colaborativas, financiamento coletivo, mobilizações diversas são a prova viva disso, ou seja, quando a interação se distancia do cunho funcionalista e se calca na partilha emancipatória de fato, os avanços e possibilidades são enormes.

Se por um lado a atuação comunicativa (eu/tu) na rede permite, aos que têm acesso, uma atuação simétrica e individuada, permitindo a participação em busca de soluções universais, pode também, em desequilíbrio instrumental (eu/isso), resultar em um individualismo desmesurado, no fortalecimento de personas que generalizam a realidade global por considerar apenas a base relacional que têm a sua volta, entre os iguais com que decidiu se relacionar, levando a desqualificar a diferença e os interesses diversos, pensando soluções que guardam significado apenas para o “seu grupo”. Um universo que não se expande, mas se restringe, como os filtros impostos de forma silenciosa pela busca do Google: há a construção de uma realidade que só considera os interesses do indivíduo e as suas trilhas de habituais de pesquisa, trazendo o risco da falácia etnocêntrica, ou seja, indivíduos que avaliam que a sua cultura é a “melhor” e que o outro, diferente dele, deve ser domesticado.

Notas

1. http://www12.senado.gov.br/ecidadania/sobre

2. http://edemocracia.camara.gov.br/

3. New Public Management (NPM) é um movimento que propunha soluções para a Administração Pública nas décadas de 80 e 90, especialmente nos países anglo-saxões. Visava à a adaptação e a transferência dos conhecimentos gerenciais desenvolvidos no setor privado para o público, pressupondo a redução do tamanho da máquina administrativa, uma ênfase crescente na competição e o aumento de sua eficiência. Disponível em: : http://www.anpad.org.br/admin/pdf/APS-B392.pdf.  Acesso: 05set2015

4. LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência. Rio de Janeiro: Editora 34, 1999.

5. HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução de George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002.

6. “[…] expressões que hoje marcam frentes opostas no debate desencadeado nos Estados Unidos pelos chamados comunitaristas.” (HABERMAS, 2002, p.269)

7. Disponível em:  http://www.camara.gov.br/internet/agencia/infograficos-html5/diretas/index.html . Acesso: 07set2015.

8. Para o filósofo alemão Jürgen Habermas, a esfera pública representa uma dimensão do social que atua como mediadora entre o Estado e a sociedade, a partir da formação da opinião pública, entendida como resultante da participação de todos os cidadãos, a partir da livre associação e expressão, mas para que a opinião pública seja formada, tem de existir a garantia de liberdade de expressão e de associação entre iguais.

9. Disponível em: http://www.igovbrasil.com/2008/06/pensando-governo-20.html. Acesso: 07set2015

10. Disponível em: http://emag.governoeletronico.gov.br/ . Acesso: 07set2015

11. Oficial: apenas no sentido governamental.

12. Na administração, grosso modo, a accountability é considerada um aspecto central da governança, tanto na esfera pública como na privada, como a controladoria ou contabilidade de custos.

13. Disponível em: http://brasileiros.com.br/2015/04/metade-da-populacao-nao-tinha-acesso-internet-em-2013-indica-ibge/ Acesso: 07set2015.

14. Disponível em: http://pensabrasil.com/brasil-tem-a-pior-internet-do-mundo-e-ganha-titulo-de-pobreza-digital/# . Acesso: 07set2015.

15. HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do Materialismo Histórico. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Brasiliense, 1983.

16. HABERMAS, Jürgen. Democracia e Direito – Entre Facticidade e Validade. Vol. II. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Ed. Tempo Brasileiro.

17. Disponível em: http://www.fronteiras.com/entrevistas/manuel-castells-a-comunicacao-em-rede-esta-revitalizando-a-democracia . Acesso: 07set2015.

18. ROUANET, Sergio Paulo. Interrogações. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

19. CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede: do conhecimento à Política. Conferência promovida pelo Presidente da República. http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/sociedade-em-rede-do-conhecimento-%C3%A0-ac%C3%A7%C3%A3o-pol%C3%ADtica

20. CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede: do conhecimento à Política. Conferência promovida pelo Presidente da República. http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/sociedade-em-rede-do-conhecimento-%C3%A0-ac%C3%A7%C3%A3o-pol%C3%ADtica

21. Disponível em: http://europa.eu/about-eu/countries/member-countries/estonia/index_pt.htm Acesso: 09set2015.

22. Disponível em: http://www.businesswire.com/news/home/20150303005235/en/Estonia-Sets-Standard-Digital-Democracy  Acesso: 09set2015.

23. Disponível em: http://observatoriodaimprensa.com.br/e-noticias/estonia_vira_modelo_de_pais_movido_a_tecnologia/ Acesso: 09set2015.

Considerações finais

O exercício da democracia parece prescindir do aperfeiçoamento de mecanismos que privilegiem a efetiva participação do cidadão, desaguando em um processo discursivo com base em relações simétricas, visando ao fortalecimento do exercício da cidadania.

Se as audiências e consultas públicas, sejam virtuais, sejam presenciais, se mantêm no viés funcional, tornam-se apenas um instrumento justificador de decisões já elaboradas por poucos, constituindo apenas um verniz participativo e mantendo-se no padrão estritamente instrumental e burocrático. Uma prática que reforça um padrão de dominação há muito em prática. Se de outra forma passam a constituir de fato instâncias discursivas a que todos têm acesso, podem representar uma real possibilidade de exercício democrático e via de fortalecimento emancipatório.

Ressalta-se que não é o fato de ser virtual ou não que define o seu caráter democrático, mas seus objetivos e a sua acessibilidade. A dificuldade de acesso universal define ainda sua natureza restrita, sabemos, mas não quer dizer que os instrumentos presenciais têm sido formulados em outro viés, ou não careçam do mesmo cuidado.

Além disso, é importante lembrar que uma participação efetiva dependerá muito mais do interesse do cidadão em participar, compreendendo que também faz parte da transformação cultural já em curso, dos novos modelos hierárquicos em construção.

Atualmente o que identificamos é um sistema político, exaurido, quando a atividade política não é um fim em si mesma, mas um meio para que sistemas viciados e corruptos possam se perpetuar a partir de um rito burocrático de eleição a cada quatro anos.

Nas manifestações de junho de 2013, e em outras que se seguiram, ficou clara a crise de representação vivenciada no Brasil – também verificável em outros países. Uma crise convergente com importantes transformações no modelo de participação social, muitas delas oriundas de uma gama de crises de natureza global.

A experimentação de novas formas de comunicação, via tecnológica ou não, pode colaborar, e muito, para o fortalecimento da democracia, e a modelagem da democracia necessária, mas há muito a ser feito. A remodelação dessa esfera pública é matéria a ser acompanhada, evitando o risco de alimentar a pseudodemocracia com a qual trombamos diariamente. Apesar de significarem importantes avanços na busca por mecanismos que reforcem a cidadania ativa, há ainda um déficit de legitimidade nas práticas existentes, considerando que ainda estão ao alcance de um grupo reduzido de indivíduos.

Mais do que simples canais opinativos, são imprescindíveis ambientes discursivos em que os cidadãos possam se manifestar, dialogar e deliberar em busca de consensos históricos. Mais do que indivíduos apenas dispostos a estabelecer uma relação consumerista de serviços com o Governo, imediatista e casuísta, é preciso que também sejamos capazes de assumir uma cidadania ativa, comprometidos com os desafios locais e com o planeta.

Notas

Referências

CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede: do conhecimento à Política. Conferência promovida pelo Presidente da República.  Acesso: 30jul2015

HABERMAS, Jürgen. Democracia e Direito – Entre Facticidade e Validade. Vol. II. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Ed. Tempo Brasileiro.

HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução de George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002.

LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência. Rio de Janeiro: Editora 34, 1999.
ROUANET, Sergio Paulo. Interrogações. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

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