Singularidade e Multidão

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Autores: Diego Felipe Souza, Rodrigo Bertamé, Alessandra Santos

Pareceristas:  Helena de Moraes Fernandes e Salvatore Benvenuto

Resumo

O objetivo desse trabalho é fazer uma pequena reflexão sobre a sociedade contemporânea e, principalmente, sobre o papel social, econômico e político do sujeito do século XXI que vive imerso em redes sociais locais, globais e distribuídas. Partimos do pressuposto de que vivemos hoje para além da visão clássica cartesiana de sujeito único, imutável e separados de tudo que nos rodeia; e sim para a visão de que somos singulares e que estabelecemos relações com tudo o que nos cerca. Para isso, iremos abordar de forma breve, entendendo o texto como trabalho de conclusão de curso, os conceitos de “singularidade” e “multidão”, conforme analisados por Antonio Negri e Michael Hardt, no livro Multidão: Guerra e Democracia na Era do Império e relacionaremos suas abordagens com os conceitos de comum, redes sociais e emergência.

Hoje, com as múltiplas possibilidades de processamento e de interações simultâneos, não é mais permitido pensar o sujeito como sendo um ser estável, em que todos os seus diferentes processos constituintes obedecem a um único comando. O sujeito é múltiplo, não pode ser reduzido a uma identidade única (PEIXOTO; AZEVEDO, 2010).

As reflexões para este trabalho se iniciaram no primeiro período de 2013, durante o curso regular1 oferecido pelo Next (Núcleo de Experimentações em Tecnologias Interativas), dentro do Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS) da Fiocruz, e suas ideias foram retomadas no curso do Next que dá tema a este E-book2 .

As primeiras reflexões para a escrita deste trabalho estavam voltadas para o pensamento de Edgar Morin de que “(…) há em cada ser, e singularmente no ser humano, ao mesmo tempo vários seres e múltiplas modalidades de ser” (2011). Isso se remetia à ideia de que o sujeito do século XXI desempenha diferentes papéis na sociedade, no mundo do trabalho, na relação com a família e com os amigos. Com o pensamento de Morin surge, implicitamente, a ideia de que não cabe mais em nosso mundo o pensamento racional, compartimentado, cartesiano, que separa os saberes, desintegra os problemas fundamentais e globais. Para o autor, o indivíduo é constituído pela própria sociedade ao mesmo tempo em que a constitui. Isso quer dizer que a sociedade está no interior do indivíduo pela linguagem, pela cultura, pela educação, pelas normas, pelos tabus, etc. Da mesma forma, os próprios indivíduos que, interagindo entre eles, produzem a sociedade. Não haveria uma linha que separa o que está fora, o mundo exterior, do que está dentro, do sujeito. O todo faz parte do um e o um faz parte do todo.

Aproximando o pensamento de Negri e Hardt, para entendermos a dimensão do que estamos nos referindo, podemos dizer que vivemos hoje em meio a uma grande mudança global em termos econômicos, políticos e sociais. Assistimos a uma nova forma de capitalismo pós-industrial, pós-fordista, baseado em novos tipos de relações de produção que estão relacionados à alta capacidade de comunicação, à cooperação e também à hegemonia do que costuma-se chamar de trabalho imaterial na metrópole. Este é um tipo de “trabalho que cria produtos imateriais como o conhecimento, a informação, a comunicação, uma relação ou uma reação emocional” (HARDT, NEGRI, 2005, p. 149), e tornou-se nas últimas décadas do século XX, a principal fonte de valor e riqueza da sociedade.

Estes autores concebem o trabalho imaterial como tendo duas formas fundamentais: (1) Trabalho intelectual ou linguístico que produz ideias, símbolos, textos, imagens e produtos do gênero; (2) Trabalho afetivo que produz ou lida com afetos como a sensação de bem-estar, tranquilidade, satisfação, excitação ou paixão.

Com o trabalho imaterial, surgiram, portanto, novas formas de trabalho, de forças produtivas e de relações sociais. Para uma melhor compreensão dessas novas relações de trabalho e da composição do que aponta como uma nova “classe trabalhadora”, Negri (2003) elaborou um complexo arcabouço teórico utilizando-se de autores como Espinosa, Foucault e Marx, sem perder de vista o fluxo das movimentações políticas constitutivas dos trabalhadores organizados e as respostas reativas dos meios de coerção do Capital.

Sobre Singularidades e Multidão

Negri propõe o entendimento de que a força não se encontra no sujeito enquanto um indivíduo definido, mas nas singularidades das relações entre os indivíduos. O sujeito contemporâneo, imerso nessa sociedade em rede do tipo que vivemos, se transforma, assume várias facetas, fazendo surgir novas singularidades.

“Um sujeito que participa de um todo sem ser seu produto, de uma determinação que participa de uma classe sem ser uma função sua (…) falamos em singularidades diferentes, nunca identificadas no conjunto e tampouco nunca consubstanciadas como indivíduos separados.” (NEGRI, 2003, p. 158)

Quando esse sujeito se une a outros, forma uma multidão que é múltipla, “composta por inúmeras diferenças internas que nunca poderão ser reduzidas a uma unidade ou identidade única – são diferentes culturas, raças, etnias, gêneros e orientações sexuais; diferentes formas de trabalho, diferentes maneiras de viver; diferentes visões de mundo; e diferentes desejos” (Hardt, Negri, 2005, p.12).

Em uma palestra no Rio de Janeiro, Negri sintetizou que a “multidão se apresenta como uma multiplicidade de singularidades”3 . Multiplicidade neste contexto pode ser entendida como a capacidade de um agregar que não nega as diferenças que reúne. Ou melhor, um conjunto que se dê como uma comunidade de diferenças.

Ao dizer que a multidão é composta de singularidades cujas potências são relacionais, o autor propõe que cada diferença presente em seu conjunto, possui força própria, onde cada componente só pode ser como tal dentro de uma dinâmica de relação que permita construir, paralelamente a si mesma e ao todo da qual é parte.

A multidão não seria, portanto, nem o encontro da identidade, nem pura exaltação da diferença, mas sim o reconhecimento de que por de trás de identidades e diferenças, pode existir “algo comum” (…) entendido como proliferação de atividades criativas, relações ou formas associativas diferentes. (ibdem, 2003, p. 148).

Podemos aqui entender o conceito de multidão ao compará-lo e diferenciá-lo, como faz Negri, do conceito marxista de classe operária. Tal conceito relaciona-se às teorias políticas ligadas ao período da grande indústria, que se fundamentam em muitos pilares teóricos específicos deste momento histórico do desenvolvimento material das formas de trabalho.

De uma forma restrita, a classe operária pode ser entendida apenas como aquela que efetua um trabalho industrial, já de maneira mais ampla a todos os tipos de trabalhos assalariados. A classe operária em muitos pontos é similar ao conceito de multidão, no entanto esta similaridade de forma nenhuma faz com que elas sejam identificáveis. Para Negri (2004), a multidão pode ser entendida como classe, mas de forma diferente da que é entendida a classe operária. Ela seria o novo proletário, “uma concepção expansiva e aberta de proletariado.” (BROWN; SZEMAN, 2006, p. 105).

No cenário contemporâneo apresentado, a multidão seria quem detém o papel de ator das novas e hegemônicas formas de produção, pois é o agente ativo das redes de cooperação social. Para os autores, o modelo de trabalho contemporâneo propõe que a expropriação hegemônica do trabalho ultrapasse os muros da fábrica. Ela seria o fruto das atuais relações de produção do capitalismo pós-industrial. Ela é formada, segundo os autores, “por todos aqueles que trabalham sob o domínio do capital” (HARDT; NEGRI, 2005 p. 147).

Para Hardt e Negri, diversas formas de trabalho que hoje são produtivas, produzem o comum e compartilham um potencial de resistir à dominação do capital. A multidão seria o corpo de singularidades que é imbricadamente ativa e organizada a partir desta nova forma de trabalho. De forma que, para Negri (2003), a multidão seria essencialmente criativa e auto-organizável.

Conceito de Comum

Negri (2003) considera que na contemporaneidade, o capital não consegue permear o trabalho disciplinarmente como no modelo industrial, mas busca registrar a existência e opera sistemas de captura e controle, de forma a permear por toda a vida. O capital passa a ter então uma ação bio-política. O autor nos apresenta a partir deste ponto um novo conceito a se considerar, o poder constituinte: “o poder expresso pela multidão dos sujeitos singulares” (NEGRI, 2004, p. 198). Para Negri (2004, p.199), quando as singularidades “organizam a própria produção e reprodução social, não há razão pela qual deva existir um poder acima deles” e a resultante desta produção é o que o autor trata pelo conceito de comum.

Em uma sociedade tal qual apresentada cujo trabalho hegemônico não dependesse da relação de escassez da matéria, mas sim da complexidade e reprodutibilidade das relações de comunicação e conhecimento, os sistemas privados podem ser questionados como limitações. Um exemplo consiste na mudança sobre a qual passou a indústria fonográfica com o advento do compartilhamento P2P de músicas. A possibilidade do compartilhamento por redes, ao mesmo tempo em que tira da indústria o controle sobre o produto acabado, permite uma grande expansão deste mesmo produto. O trabalho imaterial produz formas imateriais de propriedade, questionando patentes, direitos autorais, e as relações de cooperação e comunicação produzem o que o autor chama de comum.

“Sob a hegemonia do trabalho imaterial, a exploração já não é primordialmente a expropriação do valor medida pelo tempo de trabalho individual ou coletivo, e sim a captura do valor que é produzido pelo trabalho cooperativo e que se torna cada vez mais comum através de sua circulação nas redes sociais”
(HARDT; NEGRI, 2005, p. 156).

Redes Sociais e Emergência

Para Michael Hardt e Antonio Negri (2005), as redes são a forma isomórfica4 de organização na sociedade contemporânea. Para qualquer direção que se olhe poderemos identificar formas de rede atuando. A ordem global do império é uma rede, o meio empresarial cada vez mais se utiliza de estratégias baseadas em redes organizativas, e até mesmo a área tecnológica apropria-se da ideia de rede para construir robôs que cooperem entre si e complexos sistemas de informação e de inteligência5 .

Podemos dizer que o trabalho nos dias de hoje se dá hegemonicamente através de redes cooperativas de produção. A exploração e o lucro capitalista também provêm da apropriação e privatização do que é produzido pelo trabalho cooperativo, ou melhor, por estas redes produtivas. E a multidão como classe explorada e protagonista do processo de produção, está inevitavelmente relacionada à forma de rede, pois só este tipo de organização pode garantir que ela seja o que é e que um conjunto de sujeitos possa ser composto por múltiplas singularidades.

Uma figura metafórica que pode ajudar a ilustrar a multidão como rede é a do enxame. Esta tenta apresentar as características fundamentais das organizações em rede, através da imagem de animais sociais, sobretudo dos insetos.

Sob uma observação externa, aparentemente, tanto um enxame de animais como uma rede de atuação política se expressam de forma súbita, espontânea e caótica. No entanto, mediante uma análise um pouco mais elaborada da questão é possível perceber que na verdade uma rede disseminada é descentralizada, organizada, racional e criativa.

Para aprofundar ainda mais a metáfora do enxame, Hardt e Negri (2005, p. 130) recorrem também ao termo “inteligência de enxame”. Um termo oriundo das ciências exatas que serve para designar um tipo específico de inteligência artificial, que consiste em uma técnica coletiva de solução de problemas sem um controle central ou modelo geral predefinido. Este tipo de tecnologia6 tem como inspiração e fundamento o comportamento coletivo de animais sociais, tais como cupins, abelhas e formigas. E consiste na ideia de que, como indivíduos os membros de um enxame não demonstram sinais de inteligência, mas como coletivo (enxame) formam sistemas realmente inteligentes que funcionam sem a necessidade de um controle central, o que concede aos mesmos a capacidade de fazer coisas incríveis. Tais características do enxame de animais sociais, que serviram para as ciências exatas elaborarem a ideia de inteligência de enxame, podem ser consideradas válidas para as formas de organização de rede dos movimentos sociais contemporâneos.

O enxame é a “imagem” propícia para significar as qualidades desejadas e identificadas nos emergentes movimentos sociais da multidão, tais como a eficácia organizativa na realidade política pós-moderna, funcionamento descentralizado e horizontalizado, alto poder de comunicação, mobilidade e aparente intangibilidade frente ao inimigo.

Conclusão

A teoria da multidão elaborada por Antonio Negri e Michael Hardt não pode ser entendida como uma resposta derradeira aos problemas colocados pela realidade contemporânea. No entanto, é favorável ao desenvolvimento de um melhor entendimento teórico e de capacidade prática de intervenção na realidade. Segundo essa visão, a multidão surge como um sujeito social que aponta para novos horizontes de caráter teórico e prático.

Ao mesmo tempo em que a concepção restrita de sujeito político das teorias marxistas tradicionais não consegue mais alcançar e entender a complexidade dos trabalhadores explorados, os partidos e sindicatos centralizados e hierarquizados, típicos da esquerda tradicional, passam por uma crise de representação profunda. Vemos que a concepção de sujeito e as formas horizontalizadas e democráticas da multidão, da forma como entendida pelos autores analisados, podem representar uma alternativa promissora ao enfrentamento do poder do capital.

Ao observar o crescimento de organizações coletivas urbanas, encontramos esta potencialidade expressa em acontecimentos dos mais diversos: feiras de trocas, hortas comunitárias, cineclubismos, eventos livres organizados autonomamente, midialivristas, entre outros trabalhos que são feitos por pessoas que são consideradas como sendo “da ponta” do sistema. Estes seriam exemplos destas novas formas de trabalho cooperativo que atuam produzindo novas subjetividades e representações potentes, apesar de nascidas da ausência e precarização de outros meios.
De forma que, mesmo sendo estas ações singulares, locais e aparentemente desconectadas, se mostram potentes quando compreendidas como um todo, um conjunto de acontecimentos cuja sincronia se torna capaz de modificar parte da estrutura na qual está constituída.

Notas

1. Curso Redes Sociais Antes e Depois da Internet. Link do curso no grupo do Facebook: https://www.facebook.com/groups/redessociais2013/?fref=t

2. Curso “Oito Temas Para se Pensar a Ciência, a Sociedade e as Redes na Era da Complexidade” oferecido pelo PPGICS/Fiocruz no primeiro período de 2015. Link do curso no grupo do Facebook: https://www.facebook.com/groups/1561570187455850/?fref=ts

3.Texto retirado da Internet, tradução de Izabel F.M. Borges, a partir da transcrição literal da fala de Antonio Negri no evento Estados Gerais da Psicanálise: Segundo Encontro Mundial que aconteceu em outubro de 2003 no Rio de Janeiro.

4.“Isomorfismos são procedimentos descritivos no sentido de que guardam relação com uma determinada forma de exposição (…). Do ponto de vista ontológico, cada um desses procedimentos descritivos é dirigido por um motor fundamental, que poderíamos chamar, dependendo do caso, tanto o motor do trabalho vivo quanto o da “marcha da liberdade”. (NICHOLAS BROWN; IMERE SZEMAN. O que é Multidão? Questões para Michael Hardt e Antônio Negri. Novos Estudos. 2006. n.75, p. 100).

5. A rede da internet é o maior exemplo de sistemas de comunicação e inteligência que funcionam sob este tipo de organização.

6. Tecnologia conhecida mais amplamente pelo termo “swarm intelligence”

Referências

CARVALHO, D. Jornalismo de multidão: a resistência da rede Indymedia. Dissertação de mestrado. Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2011. Acessado em 24/11/2015

HARDT, M., NEGRI, A. Multidão: Guerra e Democracia na Era do Império. Rio de Janeiro: Record, 2005.

MORIN, E. O Método 2: a Vida da Vida. Porto Alegre, Sulina, 2011.

NEGRI, A. Cinco lições sobre Império. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

NEGRI, A. Para uma definição ontológica da Multidão. Lugar Comum, No. 19-20, 2004, pp.15-26. Acessado em 15 de junho de 2015.

PEIXOTO, M.C.S., AZEVEDO, L.C.S.S. Edgar morin e a construção de um sujeito múltiplo para uma educação complexa: breves apontamentos. InterSciencePlace, América do Norte, 2010.

QUEIROZ, D.F.S. Quem enfrentará o império? Uma discussão acerca do conceito de multidão de Antônio Negri e Michel Hardt, e da configuração político-social contemporânea. Publicado por Coletivo Cultural Consciência Criativa. Scribd, 2010. Acessado em 15 de junho de 2015.

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